domingo, 5 de setembro de 2010

“Eu estive no inferno”

Quando o último varredor do último degrau de arquibancada juntar o último copo plástico atirado ao chão pelo último torcedor que abandonou o estádio no final da última tarde de futebol do ano, nesse momento ele já terá a resposta para as questões existenciais que nos afligem por estes dias.

O gari hipotético poderia se chamar Janicleison. Ter quarenta e cinco anos. Estar há quinze sendo o tal último varredor. E, caminhando pelo concreto da cancha, ter descoberto que os riachos evaporados de LIBER indicavam não apenas o desperdício de dinheiro em sucos de cevada, mas também um caminho até os portais das viagens temporais.

Como o dinheiro é pouco e as milhagens dão cada vez para menos, seu Janicleison só conseguiria ir para o passado e com curta distância – apenas três meses e dois dias, estourando qualquer limite. Ele surgiria em algum ponto de Porto Alegre vestindo uma psicodélica roupa feita de papel laminado e procuraria o bar mais próximo para fazer sua DESCOMPRESSÃO de tamanha viagem.

Ao dar por si, seu Janicleison estaria agarrado a um copázio de cerveja verdadeiramente alcoólica, sorvendo um colarinho não tão branco quanto poderia estar, e mirando o futuro do qual veio com mais resignação do que qualquer um ao seu redor. Se o seu Janicleison for um sujeito de cabelo ralo, barba mal feita e olhos de um cinza líquido, eu o encontrei por acaso ontem.

Dizia ter acordado com o peito comprimido pela mesma depressão já sentida em anos que cria esquecidos para sempre, ido ao estádio e se colocado a coletar papéis e sacos plásticos que o vento da manhã quase veranista fazia alçar voo. Aí pisou em algo meio liso, escorregou, enredou-se num vórtice arroxeado e reintegrou-se diante de Zero Horas em cujas capas se lia que era sábado, 4 de setembro de 2010.

Seu Janicleison não sabia exatamente como se metera na enrascada que o fazia sugar o sumo dourado num ritmo incomum – às minhas custas –, mas trazia no fundo da voz a gravidade cavernosa de quem esteve diante do inferno e voltou. Observando os créditos do pay-per-view que subiam na widescreen do boteco, estampava na pele curtida um sentimento irrequieto muito diferente da felicidade moderada de quem ocupava as mesas contíguas.

Nosso varredor veio de um tempo sem ídolos nem perspectivas, aquela terra mítica também conhecida como Dia Seis de Dezembro. Ele garante que, naquelas lonjuras, Portaluppi está tão distante do Olímpico quanto Ipanema, enquanto Victor e Jonas se separam da Azenha por alguma distância medida nas milhas náuticas que pontilham o azul do Atlântico até o Velho Mundo.

No Caderno de Esportes, as notícias todas se questionam sobre a melhor tática a ser usada por Celso Roth diante de um time PAPUANO, e apenas duas páginas com caracteres rigorosamente contados estão dedicadas à crise que se abate sobre o Olímpico. O ponto que faltou representou o descenso ao escalão inferior do futebol nacional e os incômodos que uma Série B causa afastaram a chapa escolhida nas urnas para comandar o Grêmio em 2011.

Poucas horas depois da partida, os eleitos se adonaram dos microfones para enfatizar que não tomariam posse. O caos se instaurou imediatamente. Molotovs arrebentaram as vidraças do Olímpico e a Grêmio Mania teve saqueadas todas as suas camisas retrô da temporada 1995. Das de 2010, não houve registro de sumiço nos estoques. Alguém declarou à imprensa que as novas eleições seriam gerais, com candidatura e votação abertas a qualquer pessoa que mantivesse algum vínculo com o clube.

Inovadores, Douglas e Souza lançaram uma chapa em que seriam presidente e vice – não necessariamente respectivamente – e prometeram uma gestão absolutamente profissional. Começando pela concessão de salários polpudos aos ocupantes de cargos diretivos; no caso, eles próprios. Por falta de concorrentes, no dia em que Janicleison atravessou as camadas do tempo a “Chapa 4 – Driblando pelo Meio” despontava como favoritíssima na nova eleição.

A primeira medida seria usar o dinheiro da venda de Victor e Jonas para tentar repatriar Hugo.

Nesta altura, interrompi a palestra assustado e questionei se não haveria alguma solução. “Tem”, disse-me Janicleison. “Pra quem viu o que deu errado depois, é bem mais fácil corrigir”, garantiu. Continuou: “se me dessem duas semanas no Olímpico, eu mudava tudo. Mas tem que ser logo”. Pediu mais uma garrafa de cerveja, sempre na minha conta.

“Mas nós acabamos de recuperar um jogo contra o Botafogo, e até teve uma dose de glória. Saímos com dois gols contra e buscamos faltando cinco putos minutos pro fim”, desafiei. “Pois é, parceiro”, concordou ele com um ar condescendente – “em 2004 também”.

* * *

Janicleison não estava mais no bar quando voltei do banheiro. Ninguém sabia dizer aonde foi. Mas ele não era um bêbado contador de histórias, muito menos um delírio. Era o Profeta do Porvir. E eu deixei sumir. Nossa salvação nos tem escapado até quando parece palpável. Não podemos nos distrair.

Se não cairmos, é porque ele partiu na direção do Olímpico e em algum momento da próxima semana sentará para prosear com o Duda Kroeff. Torça para ser ouvido, Janicleison. Caso contrário, dê umas vassouradas nele.

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