quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Hoy no me voy para México

Malditos Menudos. O som do apito do árbitro ainda escorria pela cartilagem dos seus ouvidos e aquela musiquinha que a moça tantas vezes lhe fizera ouvir, sem maior razão para tanto, agora vibrava junto com o estrilar do sopro do homem de preto. Quem o visse de perto notaria que seu suor espesso era como a baba dos melhores cavalos que ofegavam com as bocarras escancaradas após os páreos disputados nos hipódromos dos jardins.

Seus olhos eram os de um doente terminal vagando pelos corredores do nosocômio, desanimadamente abertos a buscar uma aspiração talvez inatingível. Fixava a vista na marca do pênalti, no círculo meio desbotado sobre a grama, e imaginava ali a bola que logo colocaria. Pensava nisto. E pensava nela. Na mulher que desejava, não na bola. Não que o redondo da bola lhe trouxesse à mente a figura da moça, que estava enxuta, mas porque em seus conceitos parecia óbvia a relação entre as duas coisas – o tiro certeiro, a glória, as mãozinhas dela batendo uma na outra e aplaudindo. E ela mais próxima dele cada vez que as palmas das mãos se juntavam para fazer plat-plat-plat.

Porque estava naquela fase da admiração em que, depois de se aproximar sem segundas intenções, o sujeito descobre que quer algo mais e precisa encontrar uma maneira de contornar a própria amizade que já criou. Malditos Menudos. Malditas tardes em que, infantil, se tornara confidente dela e tão necessário a ponto de fazer uma relação mais profunda ser temida – já que pondo tudo a perder. Maldita a vida de ser a esperança do time local e estar num jogo em que nada acontece, a bola não vem e o nervosismo aumenta conforme os raios cósmicos cruzam o campo e os minutos se adiantam.

Vezemquando procurava ela com a esquina do olho nos pedaços que cercavam o gramado e encontrava sua expressão reconfortante, de como se nada estivesse acontecendo. Não uma indiferença. Antes, uma segurança. Uma suavidade que nem os carrinhos inimigos conseguiam borrar. Então ia às arestas internas do corpo e encontrava, ali, naquela última dobrinha entre o fígado e alguma coisa que fique próxima do fígado, um miligrama da substância mística que dá ao homem mais forças do que ele normalmente tem.

Mas, aos quarenta e tantos minutos do segundo tempo, quando o sujeito recebe um lançamento, tenta virar para o gol, embrenha-se entre os marcadores e é derrubado, e é derrubado para ouvir o apito de um pênalti que pode mudar toda a história do jogo, e ouve esse apito sabendo que do outro lado está um goleiro que cobiça a mesma moça por quem tantas horas de sonho foram gastas, e sabe que este goleiro nada tem a perder – aos quarenta e tantos minutos do segundo tempo, quando tudo isso acontece, nem mesmo toneladas da tal substância mística impedem que os olhos entorpecidos com a luz como um leitor se entorpece diante de um parágrafo sem pontos finais, nem mesmo essas toneladas impedem que a distância entre as traves pareça absurdamente menor do que costuma ser.

E que o arqueiro surja como um gigante a tapar todo o quadrilátero do gol.

Precisava derrubar aquela bastilha com golpes de bico da sua chuteira. Um único golpe, na realidade. Conhecia o goleiro, o canalha, da forma como se conhece um meio-irmão distante. Cruzara com ele algumas vezes, em tempos idos, com outros objetivos e quando essas questões todas não importavam nem existiam. Lamentavelmente, a tarde agora não estava sendo sua. E mesmo a superioridade do seu time não significara para ele um bom futebol. Pouco fizera diante do goleiro tirano. Nada fizera, sabia, para impressioná-la. Agora, porém, havia o pênalti. “Hoy me voy para México / quiero estar con ella”, ressurgia, brigando com o ruído do apito, o maldito verso.

Pegou a bola.

Conhecia aquele campo e as suas irregularidades. Sabia que o cafajeste da camisa um não era de esperar chutes. Lembrou-se do que sempre ouvia do pai de um amigo, um uruguaio: os que jogam bola e treinam para isto não têm o direito de errar pênaltis. Basta chutar forte e no canto. Quem dizia isso, usando a voz do pai do amigo, era na verdade Hector Scarone – o maior artilheiro da Celeste Olímpica, que só errara um pênalti na vida. Errou não por perder para o goleiro: certa vez, ocorreu de atirar na trave - por descuido ou raiva divina, pois a Perfeição não é para os mortais.

Scarone foi campeão do mundo. Já ele, naquele campinho, observado pela mulher que mais queria e diante do homem que mais odiava, contentava-se com o júbilo de um dia só. Bateria forte e no canto. Tirar fuerte que ya está adentro. E não olharia para o goleiro. Não se desviaria em momento algum. Aninhando a pelota na marca dos onze metros, decidiu correr com a cabeça baixa. Por fugazes instantes suas ideias rabiscaram a hipótese de dar uma paradinha, prender a passada e confiar na quase infalível tendência do arqueiro de se jogar por antecipação. Mas não sabia dar paradinha e riu consigo mesmo por cogitar o absurdo.

Desconcentrou-se.

E, desatento, mirou os olhos do goleiro. Durou um segundo. Quiçá menos, mas ainda assim muito mais do que os cronômetros diriam. Durou a extensão de uma partida ou uma vida inteira. O temor jorrava das retinas do inimigo, estático e extático sobre a linha fatal. Voltou a confiança do batedor. Quanto ao goleiro: braços bem abertos. A fé irracional numa envergadura de Boeing 747. No entanto, atrás dele o gol crescia. O Boeing já era pequeno demais para tapar com suas asas a extensão de um retângulo de metal pintado de branco que se dilatava prometendo o gol, o gol, o gol.

Desatou a corrida. Um pé. O outro. O primeiro novamente. Pisoteava a grama em câmera lenta. Com aquele gol iria para seu México metafórico e teria o seu amor. De algum jeito. Nem que esperasse mais mil anos. Mas aquele gol garantiria que ela seria sua, e só sua, pois no mundo é preciso haver algum resquício de justiça e ele, afinal de contas, nunca pedira nada muito grandioso aos céus. O arqueiro não se definia. A distância para a bola se reduzia dramaticamente. O Boeing estacionado. E por fim já não havia como fugir da proximidade com a esfera e seu pé se revestiu de tijolos com a disposição de enterrar o camisa um nas redes.

A bola tomou o rumo de um canto e cortou a atmosfera.

Fechou os olhos. Esperou cego naquela solidão eterna de um microssegundo em que todo o bulício da cancha se confunde e até é possível decifrar uma vibração. Que a seguir virou vaia. “U” foi uma vogal muito repetida nos minutos seguintes. Virou-se para os companheiros – e na testa de cada um, marcada por ferro em brasa, ardia a mensagem dizendo que o goleiro pulou certo e alcançou a bola. As redes vazias eram o México inalcançável de todos os dias.

Ele, o artilheiro do time, errou o pênalti. E não pela primeira vez. As escrituras dizem que seu nome era Jonas, mas pode ser um erro de tradução.



(a foto que ilustra o texto é de EDUARDO COVALESKY e foi tirada na decisão por pênaltis do jogo Grêmio 0-0 Coritiba [4-2], válido pelo Brasileirão Sub-20, disputado em Santa Maria em dezembro de 2009)

Nenhum comentário:

Postar um comentário